O edifício Marina Mendes Margarido, localizado na avenida Angélica n. 172, abre o roteiro das 211 obras modernas da cidade de São Paulo selecionadas pelos arquitetos Alberto Xavier, Carlos Lemos e Eduardo Corona (Arquitetura Moderna Paulistana. São Paulo: Pini,1983). O edifício, construído para renda de aluguéis, foi projetado por Júlio de Abreu Jr. (nascido em 1895), que realizou diversos projetos no centro novo de São Paulo. A data atribuída ao projeto, 1927, permitiu aos autores destacar o edifício como a primeira construção moderna da cidade. Fato que talvez diga mais sobre os valores “modernos” que resistiam na passagem dos anos de 1970/1980, do que sobre as qualidades intrínsecas do edifício.

Página com o edifício número 1 do roteiro Arquitetura Moderna Paulistana

A página Prédios e casas de São Paulo no facebook traz a informação de que o incorporador do terreno onde está o edifício, Sylvio Margarido, era um apoiador do movimento modernista. Esse fato talvez explique as linhas modernas do Marina Mendes Margarido, já que, aparentemente, foi o único exemplar moderno na obra, essencialmente eclética, de Júlio de Abreu Jr. Por exemplo, é atribuído ao arquiteto, o projeto da Vila Normanda, uma vila de casas em estilo normando, que ficava no local onde hoje estão os edifícios Conde Silvio Penteado (av. São Luís, 130) e o edifício Vila Normanda (av. Ipiranga 318).

Vila Normanda, face voltada para a Avenida Ipiranga. Foto: autor desconhecido, década de 1950.

A data de 1927, ostentada no Arquitetura Moderna Paulista, é atribuída a depoimento do próprio Júlio de Abreu Jr.: “o arquiteto, situando essa obra no ano de 1927”. Há de ter havido um razoável lapso entre projeto e construção, pois no mapa SARA Brasil, de 1930, nada indicava, ainda,  a presença do edifício Marina Mendes Margarido.

Em amarelo, o terreno onde veio a ser construído o edifício. Mapa SARA 1930

Praça Marechal Deodoro e o edifício Marina Mendes Margarido (à direita). Autor desconhecido.

Além de não aparecer no mapa de 1930, o edifício também não aparece em listagens anteriores da arquitetura moderna, pode-se dizer que ele “entrou” para a história no roteiro de Xavier, Lemos e Corona, aproximadamente 50 anos depois de sua execução. Qual a razão da valorização desse edifício na virada das décadas de 1970/1980?

O edifício foi elogiado por abrir os quartos para o sol e voltar os serviços para rua. Na cidade tradicional, a face voltada para a rua tem usualmente uma importância maior e, por isso mesmo,  os ambientes sociais da casa tendem a ocupar a fachada principal. Enquanto, na cidade funcional do urbanismo moderno, os edifícios, idealmente soltos na paisagem, não têm hierarquia entre as elevações e a distribuição dos ambientes é regida pelos pontos cardeais, independentemente do traçado urbano. Portanto, os autores do roteiro entenderam a atitude de voltar os serviços para a rua como disruptora com a cidade tradicional.

Planta do edifício publicada no roteiro Arquitetura Moderna Paulistana (quartos com face NO, banheiro e terraço, aproximadamente, com face Leste.

Além da inversão da planta, foi elogiada a solução plástica da face voltada para a rua. De acordo com os autores, a solução lançou mão do contraste entre os panos de parede e os vazios do terraço e da ventilação para conferir à fachada um sentido tridimensional (rompendo assim com a fachada bidimensional, tradicional).

Parece claro, na foto usada no roteiro Arquitetura Moderna Paulistana e no elogio da solução plástica, a referência a edifícios caracterizados por panos de concreto e vazios de sombra das décadas de 1960/1970. Duas residências unifamiliares da década de 1970 – que integram o roteiro de Xavier, Lemos e Corona – mostram bem a exploração plástica do contraste entre os panos de fechamento e os vazios, criando uma abstração tridimensional:

Residência Antônio Junqueira de Azevedo, 1975 (obra 193 do Roteiro). Arquiteto: Paulo Mendes da Rocha.

Residência do arquiteto, 1976 (obra 201 do Roteiro). Arquiteto Abrahão Sanovicz

Naturalmente, cada modelo de cidade pressupõe um tipo arquitetônico diferente. Mas é curioso que as virtudes apontadas por Xavier, Lemos e Corona no edifício da avenida Angélica dizem respeito a um eventual rompimento com a cidade tradicional, num momento  (1970/1980) em que começava justamente uma revalorização da cidade tradicional, em detrimento da cidade funcional do urbanismo moderno. Assim, os autores do roteiro Arquitetura Moderna Paulistana parecem ter usado o edifício Marina Mendes Margarido, e sua ancestralidade, como uma resistência e defesa tardias do tipo arquitetônico da cidade funcional.

De qualquer forma, a solução original da planta do edifício era de fato sui generis. Com dois apartamentos por andar, o centro da fachada era ocupado pelos banheiros que tinham um pé-direito menor, permitindo assim um vão entre a cobertura dos banheiros e a laje do edifício para ventilar as cozinhas, que não tinham janela.

Edifício Marina Mendes Margarido: em amarelo corpo dos banheiros, em lilás ventilação da cozinha.

Os quartos, dois por unidade e voltados para o fundo, abriam diretamente na sala, do lado oposto ao banheiro. Outra característica curiosa da planta era um banheirinho junto ao patamar da escada, talvez um banheiro de serviço. Na cobertura, dez quartos de empregada, um para cada apartamento.

Planta original do edifício Marina Mendes Margarido. Indicação do banheiro de serviço e ventilação da cozinha sobre o banheiro.

O texto de Xavier, Lemos e Corona aponta, no início da década de 1980, que o prédio estava com conservação precária. Bastante próximo ao Minhocão, que desde 1971 corta a praça Marechal Deodoro, o edifício sofreu o impacto da degradação provocada pelo elevado.

Decadente: Edifício Marina Mendes Margarido, sem data. Foto: Hugo Segawa

O edifício com uso comercial, antes da Lei da Cidade Limpa. Foto: Michel Gorsky.

Após ter uso comercial, o edifício passou por um retrofit e voltou ao uso residencial. O projeto de reforma, embora tenha atualizado a planta, foi descuidado e rompeu com a relativa simetria da fachada. Foi construído um banheiro em cada quarto, o banheiro antigo perdeu o teto baixo e foi dividido entre uma área de serviço, em continuação à cozinha, e um lavabo. No site da imobiliária Refúgios Urbanos, ao pesquisar o nome Júlio de Abreu, é possível ver fotos internas de um apartamento  reformado https://refugiosurbanos.com.br/  (acessado em 28/09/2020). Por sua vez, os antigos quartos de empregada da cobertura foram transformados em seis quitinetes. Com o fechamento em vidro das faixas de ventilação originais, o edifício perdeu a antiga abstração da fachada. Mas manteve sua notoriedade.

O edifício Marina Mendes Margarido em foto de Leonardo Finotti.

O edifício Marina Mendes Margarido em foto de Juan Esteves

 

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